1 - Vagando na Tranquilidade Distante 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7
2 - Discussão sobre a Igualdade das Coisas 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 2.7 2.8 2.9 2.10 2.11 2.12 2.13 2.14
3 - Cultivando o Anfitrião da Vida 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6
4 - O Mundo Humano 4.1 4.2 4.3 4.4 4.5 4.6 4.7 4.8 4.9
5 - Sinal de Espontaneidade Satisfeita 5.1 5.2 5.3 5.4 5.5 5.6
6 - Os Grandes e Veneráveis Mestres 6.1 6.2 6.3 6.4 6.5 6.6 6.7 6.8 6.9 6.10
7 - Acordo para Imperadores e Reis 7.1 7.2 7.3 7.4 7.5 7.6 7.7

Zhuang Zi - Introdução

Enquanto Laozi, autor do Dao De Jing, é considerado uma figura mitológica – ninguém sabe se ele realmente existiu – Zhuangzi, autor do livro de mesmo nome, é considerado uma pessoa real, e talvez o maior escritor da China.

O que Platão foi para Sócrates, o que Mêncio foi para Confúcio, o que Paulo foi para Jesus, Zhuangi foi para Laozi: o maior divulgador de sua filosofia. O Dao De Jing, obra fundamental do daoísmo, tem apenas 81 pequenos poemas. Sua brevidade é, ao mesmo tempo, sua maior força e maior fraqueza. Embora a concisão tenha suas evidentes vantagens, dificulta a compreensão de uma filosofia tão ampla, comprimida em tão pouco espaço: a profundidade resultante é, para muitos, um impedimento definitivo. Principalmente pela distância que nossa sociedade consumista e vaidosa tomou dos fatos básicos da Natureza – lugares comuns naquela época. Traduções feitas por “especialistas” na linguagem chinesa também não ajudam tanto, pois “homens de letras” nem sempre têm conhecimento do mundo real fora das bibliotecas, muito menos do mundo natural fora das cidades. Ao passo que qualquer pessoa observadora, há 2500 anos, entendia bem o funcionamento do mundo natural, base do daoísmo.

É aí que entra Zhuangzi, transformando os densos aforismos do Dao De Jing em exemplos ricamente ilustrados, repletos de humor e imagens fantásticas: animais falantes, animais gigantes, árvores que nos criticam em sonhos, mestres surpreendentes e aprendizes boquiabertos. Uma sequência de personagens incríveis nos ensinam as vantagens da inutilidade, as armadilhas da lógica, os perigos de se tentar instruir um governante orgulhoso. Os sete “capítulos internos” (aqueles atribuídos com maior confiança ao próprio Zhuangzi) abordam facetas diferentes da filosofia daoísta, embora a divisão não seja muito rígida. Outros 26 capítulos, não incluídos na presente tradução, foram mais provavelmente obra de seus discípulos e das gerações seguintes, que acrescentaram um grande número de casos deliciosos, intrigantes e bem-humorados, que exemplificam de forma brilhante o estilo de vida e o pensamento dos antigos mestres daoístas.

Conta-se que o próprio Zhuangzi, um sábio renomado em seu tempo, vivia longe dos aborrecimentos e intrigas da sociedade (os diferentes reinos chineses viviam então em guerra uns com os outros, e por essa ausência de harmonia manter distância era considerado o mais sensato pelos daoístas). Um dia ele pescava perto de casa, quando emissários do rei vieram lhe visitar. “O senhor é o Mestre Zhuang?” perguntaram. “Sou Zhuang”, respondeu. “Viemos a pedido do rei informar que lhe foi concedido o cargo de conselheiro real, com todas as honrarias pertinentes”. Zhuangzi não se impressionou: “No salão real não há o esqueleto de uma grande tartaruga?” perguntou. Os cavalheiros concordaram. “Os senhores acham que ela preferiria estar morta, exibida no honrado salão real, ou preferiria estar viva, arrastando seu rabo pela lama?” “Ela preferiria estar viva, arrastando o rabo pela lama.” “Então vão embora e me deixem arrastar meu rabo na lama!”

Numa época marcada por guerras e caos social, um honrado conselheiro seria celebrado enquanto tivesse sucesso, mas ao primeiro erro seu destino seria incerto. Sábia decisão a de Zhuangzi em manter-se distante de tudo isso. Ainda assim, foi humano o bastante em passar adiante seu conhecimento para o benefício das futuras gerações.


Esta tradução partiu do original disponível em ctext.org e contou com a ajuda de quatro traduções para o inglês: Lin Yutang, Nina Correa, Burton Watson e James Legge. Sou muito grato aos tradutores e a todas as pessoas que permitiram que suas versões chegassem até nós. Como escreveu Pablo Neruda em sua maravilhosa Ode ao Pão: "tudo nasceu para ser compartilhado".

Versões comparadas.

Versão português e chinês, lado a lado.


莊子|庄子 - Zhuang Zi - capítulo interno - 內篇 - 1

逍遙遊|逍遥游 - Vagando na Tranquilidade Distante

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1.1

Nas profundezas do Norte há um peixe chamado Kun. Não sei quantos mil quilômetros ele mede. Transforma-se em uma ave chamada Peng. Não sei quantos mil quilômetros ela mede. Voa com vigor, suas asas parecem nuvens no céu. É uma ave que atravessa o oceano, migrando para as profundezas do Sul. As profundezas do Sul são o lago do céu. O Qi Xie, um registro de curiosidades, diz: "quando Peng migra para as profundezas do Sul, atinge a água gerando ondas que se estendem por mil e quinhentos quilômetros, então se aproveita dos ventos que causou e sobe quarenta e cinco mil quilômetros e depois descansa por seis meses." Cavalos selvagens, grãos de pó, todos respiramos o sopro uns dos outros. O azul do céu é sua cor real ou apenas efeito da distância infinita? Quando Peng olha para baixo, é como quando olhamos para cima. Além disso, quando a água é pouca, um barco grande não pode flutuar. Ponha um copo d'água num buraco, uma semente flutua, mas o próprio copo afunda, a água é rasa e o barco, grande. Se o vento é pouco, não sustenta uma grande asa. Portanto, Peng subiu quarenta e cinco mil quilômetros, pois o vento era suficiente; carregando o céu claro em suas costas, sem nada a impedir seus planos, pôde voar para o Sul. A cigarra e o pombo aprendiz, rindo, disseram: "eu me decido e vôo, miro uma mangueira, uma goiabeira, às vezes não chego, caio pelo chão, que história é essa de quarenta e cinco mil quilômetros para o Sul?" Quem vai aos arredores da cidade, leva três refeições e volta de barriga cheia; quem viaja cinquenta quilômetros leva comida para o pernoite; quem viaja quinhentos quilômetros deve juntar comida para três meses. O que esses dois insetos conhecem! O pequeno conhecimento não alcança o grande, o tempo curto não compreende o longo. Como sabemos isso? O cogumelo da manhã não conhece a Lua Nova, a cigarra não conhece a primavera e o outono, este é o tempo curto. No sul de Chu há uma árvore chamada Espírito Profundo, para quem quinhentos anos são uma única primavera, quinhentos anos, um único outono; havia antigamente a grande Chun, para quem oito mil anos eram uma primavera, oito mil anos, um outono. O ancestral Peng é hoje conhecido por sua longevidade; e as multidões buscam imitá-lo, não é uma pena?


1.2

Nas conversas entre Tang e Ji lemos: "no inabitado Norte, há um mar profundo que parece um lago no céu. Lá vive um peixe com milhares de quilômetros de largura, não sabemos seu comprimento. Seu nome é Kun. Há também uma ave chamada Peng, suas costas parecem o Monte Tai, suas asas como nuvens no céu, com a ajuda dos furacões sobe quarenta e cinco mil quilômetros furando as nuvens, carregando o céu claro em direção ao Sul, onde pretendia ir." Um marreco, rindo, disse: "que história é essa? Eu me empino e salto, levantando vôo para cair em seguida, tendo planado entre alguns arbustos, isso é o que chamamos voar. Aonde esse aí pensa que vai?" Essa é a diferença entre o pequeno e o grande.


1.3

Assim, pessoas inteligentes o suficiente para conduzirem um negócio ou uma vila, virtuosas o bastante para aconselharem um ministro ou convocarem a nação, considerarão a si mesmas como esses pequenos animais. Mas Rong Zi de Song riria delas. O mundo todo poderia elogiá-lo e ele não se convenceria, o mundo todo poderia criticá-lo e ele não se abalaria, traçando uma linha clara entre seu interior e o exterior, não argumentava sobre noções de glória ou desonra, apenas isso. Sobre seu lugar no mundo, não calculava demais e também não se prendia. Já Liezi cavalgava a brisa fresca e gentil, retornando duas semanas depois, sem calcular demais possíveis ganhos. Embora não precisasse caminhar, ainda dependia da brisa. Se alguém pudesse cavalgar com exatidão as ondas dos céus e da Terra e pudesse dirigir as divergências entre os seis elementos do clima, viajaria sem se cansar, de que dependeria? Por isso se diz: "a pessoa realizada não é egoísta, a pessoa espiritual não busca mérito, a pessoa sensata não busca fama."


1.4

Yao pensou em ceder o reino a Xu You, dizendo: "Quando o Sol e a Lua nasceram, mas as tochas ainda não foram apagadas, não é difícil para elas brilharem? Quando a estação das chuvas chegou, mas insistimos em regar a terra, há algum benefício em nosso trabalho? A liderança verdadeira fica atenta, e o mundo é bem governado, mas eu estou decrépito, vemos apenas as minha falhas, por favor aceite governar o reino." Xu You respondeu: "O Senhor governa o reino, o reino já está bem governado. Se eu o substituísse, estaria fazendo isso pela fama? A fama é hóspede da realidade, deveria eu fazer o papel de hóspede? O uirapuru faz seu ninho no fundo da mata usando apenas um ramo, A toupeira bebe do Rio He só até encher a barriga. Descanse, soberano! O governo do reino não é de uso algum para mim. Mesmo que o cozinheiro não cuidasse bem da cozinha, o coveiro não tomaria para si utensílios e temperos."


1.5

Jian Wu disse a Lian Shu: "escutei as palavras de Jie Yu, grandes porém estranhas, se desdobravam sem nexo. Fiquei assustado com elas, tão longínquas quanto a Via Láctea, imensas como as rampas de um castelo, sem qualquer contato com a realidade humana." Lian Shu perguntou: "o que ele disse?" A resposta: "Na montanha Miao Gu She, vive um ser espiritual de pele branca como a neve, tão suave como uma criança, não se alimenta de nenhum dos cinco cereais, suga o vento e bebe o orvalho. Cavalga os ventos, monta dragões em vôo e viaja além dos quatro mares. Seu olhar penetrante pode curar os seres e amadurecer as colheitas. Achei tudo isso uma loucura inacreditável." Lian Shu respondeu: "normal, não esperamos que cegos observem exposições, ou que surdos ouçam sinos e tambores. É apenas o corpo que sofre de cegueira e surdez? O conhecimento também sofre os mesmos males. Essas palavras têm uma espécie de sutileza feminina, o segredo está nas entrelinhas. Uma pessoa assim, com essas virtudes, põe-se em meio aos seres, unindo-os. O mundo implora em meio ao caos, mas de quais problemas ela cuidaria? Nenhum ser pode fazer-lhe mal, uma grande enchente não a afogaria, uma seca ou um vulcão poderiam fazer arder a terra e as montanhas, mas ela não se queimaria. Dos seus restos poderiam ser moldados um Yao ou um Shun, de quais seres ela cuidaria? Alguém de Song levou fitas e pulseiras para vender em Yue, mas o povo de Yue usava cabelos curtos e tatuagens, e não teve uso para seus produtos. Yao governava, e o povo estava em paz em todo o continente. Saiu para ver os quatro mestres da montanha Miao Gu She, do lado ensolarado do rio Fen, no fundo lamentava o estado do mundo."


1.6

Hui Zi disse a Zhuang Zi: "o rei Wei me deu sementes de uma grande cabaça, eu as plantei e elas passaram de um metro. Pensei em usá-las para guardar água ou cereais, mas ficaram muito pesadas e não podia carregá-las. Cortei algumas para fazer colheres, mas ficaram muito rasas e não serviram para nada. Não é que as cabaças não fossem grandes, mas como não tinham utilidade alguma, eu as fiz em pedaços." Zhuang Zi disse: "Hui Zi, você é bem desajeitado quanto ao uso de coisas grandes. Uma família em Song tinha uma receita muito eficaz para tratar mãos rachadas. Por gerações a usaram por trabalharem no branqueamento da seda. Um viajante ouviu falar dela, e ofereceu cem peças de ouro para comprá-la. A família se reuniu e concluiu: 'por gerações trabalhamos no branqueamento da seda e não fizemos muito dinheiro; nesta manhã nos oferecem cem peças de ouro pela nossa técnica, que assim seja.' O viajante a comprou e foi oferecê-la ao rei Wu. Havia uma guerra com o povo de Yue, e o rei o nomeou comandante. No inverno travaram uma batalha naval, e o povo de Yue sofreu uma grande derrota. O rei dividiu a terra conquistada e ofereceu um feudo ao comandante. Com uma técnica para não rachar as mãos, pode-se obter um feudo ou viver preso ao branqueamento da seda, apenas usando-a de forma diferente. Agora você tem cabaças de mais de um metro, como não pensou em transformá-las em barris e flutuar com elas nos rios e lagos? Ao invés disso, aborreceu-se porque elas não podiam conter nada! Parece que o senhor tem mato crescendo na sua cabeça!"


1.7

Hui Zi disse a Zhuang Zi: "temos uma grande árvore que o povo chama Chu [Ailanthus altissima]. Seu tronco cheio de nós impede a fabricação de boas tábuas, seus galhos tortuosos dificultam as medidas do carpinteiro, mesmo à beira da estrada, nenhum artesão se volta para olhá-la. Agora as suas palavras, grandes porém inúteis, todos concordam em ignorá-las." Zhuang Zi respondeu: "o senhor nunca viu um gato selvagem? Aproxima-se rastejando, apenas para dar o bote; à esquerda e à direita ele salta, indo de alto a baixo na floresta; apenas para ser pego e morrer na rede do caçador. Há também o iaque, grande como nuvens pendendo do céu. Mesmo tão grande, não consegue apanhar um rato. Agora o senhor tem uma grande árvore, preocupa-se com sua inutilidade, por que não a planta no meio do nada, nas planícies amplas e selvagens, sem dúvida poderia não fazer nada ao seu lado, isolado e sem preocupações dormir tranquilamente sob sua sombra? Um machado não a derrubaria, nenhum ser a perturbaria, por que a tranquila falta de utilidade o perturba tanto?


莊子|庄子 - Zhuang Zi - capítulo interno - 內篇 - 2

齊物論|齐物论 - Discussão sobre a Igualdade das Coisas

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2.1

Zi Qi de Nan Guo estava sentado a um canto, olhando para o céu e suspirando, como se lamentasse a perda de alguém. Zi You de Yan Cheng, seu discípulo, disse: "o que é isto? Pode o corpo ficar rígido como madeira morta, e a mente fixa como brasa apagada? Este sentado aqui agora não é o mesmo de antes." Zi Qi respondeu: "Yan, você faz bem em perguntar. Agora mesmo eu havia me perdido, você entende? Você pode ter ouvido a música humana, sem ter ouvido ainda a música da Terra; pode ter ouvido a música da Terra, sem ter ouvido ainda a música do céu!" Zi You disse: "ouso perguntar o que quer dizer?" Zi Qi respondeu: "quando a grande Terra respira, nós chamamos vento. Começa em silêncio, mas depois faz dez mil aberturas ecoarem furiosamente. Você nunca ouviu o barulho do vento? Nas respeitáveis e belas florestas das montanhas, nas centenas de buracos e aberturas ao redor das grandes árvores, como narizes, bocas, ouvidos, como crateras, celas, cabaças, como canais, como fossas; borbulhando, zunindo, gritando, sugando, chamando, urrando, apitando, uivando, cantando pela frente e ofegando atrás. A brisa produz uma suave melodia; a ventania, uma grande orquestra, e quando o vento atroz sossega, a multidão de aberturas se aquieta. Você nunca viu essa agitação, essa algazarra? Zi You respondeu: "a música da Terra é feita pelas aberturas naturais, a música humana pelas aberturas da flauta. Ouso perguntar sobre a música do céu." Zi Qi explicou: "sopra nos dez mil seres de forma diferente, de acordo com a sua própria natureza, cada qual seguindo a si próprio, quem pode evitar?"


2.2

O grande conhecimento é tranquilo, o pequeno conhecimento é inquieto; a grande fala é ardente, a pequena fala entediante. Atento ao espírito enquanto dorme, aberto às formas ao despertar, presenciando e modificando o mundo, diariamente a mente disputa. Questões simples, outras profundas, algumas secretas. Aborrecidos por pequenos medos, paralisados por grandes temores. Emitindo palavras certeiras como flechas, buscando arbitrar o certo e o errado; imóveis como um juramento, buscando alcançar a vitória; mas como o inverno que mata, suas palavras vão enfraquecendo dia a dia; presos aos seus afazeres, sem poder voltar atrás; seu cansaço se fixa, as palavras se esgotam; o coração se aproxima da morte, não pode mais voltar à vida. Prazer e dor, lamento e alegria, angústias e arrependimento, indecisão e medo, vêm e vão se alternando; como a música que sai dos ocos, como o fungo na umidade. Dia e noite se alternam à nossa frente, mas não sabemos de onde vêm. Deixe estar! É o bastante! O sol nasce e se põe, é o que temos, e é o que permite a vida!


2.3

Sem esses não haveria eu, sem o eu não haveria o que buscar. Estão próximos, mas não sabemos o que os aciona. Parece haver um governante, mas mal vemos seus pupilos. Podemos seguir seus efeitos, mas não vemos sua forma, tem efeitos mas não tem forma. Cem ossos, nove aberturas, seis vísceras, completas e funcionando! Temos alguma preferência? Dizemos gostar de todas? Ou preferimos alguma? Como se dentre todas, algumas agissem como súditas! Mas sendo todas súditas é suficiente para que se governem? ou se revezam como líderes e súditas? Parece mesmo haver uma liderança! Como querer encontrar sua essência e não alcançá-la, ainda assim isso não muda sua essência. Alguém recebe o seu corpo, não o perde até esgotá-lo. Entregando-se às coisas detalhada e exaustivamente, seguindo até o fim como numa cavalgada, e ninguém consegue fazê-lo parar, isso não é uma pena?! A vida inteira labutar e labutar sem ver os frutos dessa labuta, trabalhar duro até à exaustão e não colher os seus frutos, podemos não lamentar? As pessoas dizem que não é a morte, com que proveito? Sua forma muda, a mente naturalmente a segue, podemos não chamar isso de lástima? A vida das pessoas, tão dura e pequena! Ou sou só eu que acho pequena? E há outros que não acham?


2.4

Alguém seguir sua mente formada e torná-la seu mestre, quem ficaria sem um mestre? Deve a mente ceder seu lugar e seguir outros como mestres? Até os tolos têm um mestre. Não ter a mente formada mas ter ideias de certo e errado, é como partir hoje para Yue e chegar lá no passado. É como dizer que existe o que não existe. Dizer que existe o que não existe, nem mesmo o mítico Yu poderia saber, quanto mais eu! As palavras não são o soprar do vento. As palavras têm significado, mas há palavras vindas de mentes não formadas. Essas têm significado? Ou não necessariamente têm significado? Espera-se que sejam diferentes dos chamados de filhotes de pássaros, elas também argumentam, ou não argumentam? Pode a Natureza ocultar-se a ponto de haver verdadeiro e falso? Podem as palavras ocultar-se a ponto de haver certo e errado? Pode haver lugar onde a Natureza não exista? Podem existir palavras inaceitáveis? A Natureza se oculta em pequenas formas, o significado se oculta em discursos pomposos. Por isso há confucionistas e mohistas com seu certo e errado, o certo de um é errado para o outro, o errado de um é certo para o outro. Buscando o certo no errado do outro e o errado no certo do outro, não é como usar a iluminação.


2.5

As coisas ou são aquilo, ou são isso. Olhando aquilo você não verá, mas verá se olhar a si mesmo. Por isso é dito: Aquilo vem disso, isso também é causado por aquilo. Isso e aquilo, dizemos que um vem do outro. Contudo, a vida vem da morte, e a morte vem da vida; a possibilidade vem da impossibilidade, a impossibilidade vem da possibilidade; a afirmação vem da negação, a negação vem da afirmação. Por isso o sensato não age assim, mas busca refletir o Cosmos, buscando também o seu "isso". O seu isso é também o seu aquilo, e seu aquilo é também o seu isso. Aquilo também tem o seu certo e o seu errado, este também os tem. Ele tem afinal aquilo e isso, ou não os tem? Quando aquilo e isso não têm mais seus opostos, chamamos o eixo da Natureza. Quando o eixo se encontra no centro da roda, pode então reagir sem se esgotar. Incansavelmente respondendendo às afirmações e às negações. Por isso se diz: "nada é como usar a iluminação."


2.6

Usar um dedo para demonstrar que um dedo não é um dedo não é como usar algo que não seja um dedo, para demonstrar que um dedo não é um dedo; usar um cavalo para demonstrar que um cavalo não é um cavalo não é como usar algo que não seja um cavalo, para demonstrar que um cavalo não é um cavalo. O céu é um dedo, as dez mil coisas, um cavalo. O possível é o possível, o impossível, o impossível. A Natureza segue isso e se completa, os seres mostram isso naturalmente. Como é assim? Naturalmente sendo [ou "assim mesmo"]. Como não é assim? Não sendo [ou "quando não é"]. os seres são como são, sendo assim têm suas possibilidades. Nenhum ser não é, nenhum ser não pode. Assim, defender a grama ou a coluna, a severidade ou a graça, o amistoso e o esquisito, a Natureza os interpreta|traduz como o mesmo [como um]. O seu pequeno se completa, sua completude se acaba. Para os seres comuns não há vitórias ou derrotas, pois se unem em um [estão juntos na unidade]. Quem alcança esse saber os reconhece como um, não faz uso das distinções, trata-os como ordinários|comuns. o ordinário é útil; a utilidade é compreendida; a compreensão leva à espontaneidade. Buscar a espontaneidade e obtê-la. Aí se para. Para e não sabe o porquê, eis a Natureza. Tentar unir as coisas, sem conhecer a sua unidade, é chamado três pela manhã. O que são três pela manhã? O criador de macacos, ao dar-lhes castanhas, disse: "Três pela manhã e quatro à noite." Os macacos ficaram todos furiosos. Disse: "então serão quatro pela manhã e três à noite." Os macacos todos ficaram satisfeitos. As realidades eram a mesma, mas o gostar e o desgostar vieram de uma visão parcial. Por isso as pessoas sensatas harmonizam o sim e o não, e descansam|repousam nas regras celestiais, isso é chamado seguir os dois caminhos.


2.7

Os povos antigos tinham um conhecimento extremo. Quão extremo? Para eles, era como se as coisas não existissem, era pois tão extremo, que nada podia ser acrescentado. Depois passaram a considerar que as coisas existiam, mas ainda não as distinguiam. Depois passaram a distinguir as coisas, mas não viam nelas certo e errado. Quando surgiram o certo e o errado, sua Natureza foi prejudicada. Com o prejuízo da sua Natureza, gostos diferentes se formaram. Mas de fato existem ou não existem formação e prejuízo? Havendo formação e prejuízo, o Sr. Zhao tocava seu instrumento; sem formação ou prejuízo, o Sr. Zhao não tocava seu instrumento. Zhao Wen tocava seu instrumento, mestre Kuang agitava sua batuta, Hui Zi debruçava-se em sua escrivaninha, os três conheciam muito! Eram tão bons, cada um em sua arte, que a praticaram até o fim de seus dias. Gostavam muito do que faziam, pois sentiam-se diferentes dos demais, gostavam tanto daquilo que quiseram ensinar aos outros. Tentaram ensinar o que não podia ser ensinado, e assim chegaram à obscura discussão do "rígido" e do "branco". E seus filhos, tentando seguir o rumo dos pais, por toda a vida nada conseguiram. Se isso pode ser chamado sucesso, então eu também obtive sucesso. Se isso não pode ser chamado sucesso, nem eu nem ninguém mais obteve sucesso. Por isso os sensatos procuram suspeitar de sua glória. Não buscam utilidade, mas o ordinário, a isso chamamos usar a iluminação.


2.8

Agora por exemplo há este dito, que não sei a que categoria pertence ou não? Pertença ou não, isso já é em si uma categoria, que elimina as diferenças entre este e aquele. De qualquer forma, deixe-me explicar com este dito. Houve um início, e houve um início antes desse início, houve um início antes do início antes desse início. Houve a existência, houve a inexistência, houve um início antes da inexistência, houve um início antes do início antes da inexistência. E de repente existe a inexistência, não sabemos de fato se ela existe ou não. Agora que eu já disse isso, não sei se o que eu disse quer dizer algo ou não?


2.9

Nada no mundo é maior que a ponta de um pêlo no outono, e a grande montanha é pequena; ninguém viveu tanto quanto uma criança morta, e o Velho Peng morreu jovem. O mundo e eu nascemos juntos, e todos os seres comigo somos um. Já que chegamos à unidade, uma palavra pode ser acrescentada? Já que chegamos à unidade, pode não haver espaço para palavras? Um e a palavra são dois, dois e um são três. Se seguirmos assim, mesmo o mais experiente observador não chegará ao final, e ainda menos à essência! Logo, se do nada chegamos a algo, e assim até três, onde podemos chegar partindo do que já existe! Melhor evitar fazer tanto, e nos satisfazer com o agora.


2.10

A Natureza não faz distinções, palavras não têm sentido preciso, agir sobre as coisas tem limites. Deixe-me nomeá-los: esquerda, direita, ordem, justiça, distinções, argumentos, disputas, debates, esses são chamados as Oito Espontaneidades. Fora dos limites do mundo, o sensato especula mas não teoriza; dentro dos limites do mundo, o sensato teoriza mas não comenta. No clássico da primavera e outono, lemos as vontades dos primeiros reis, o sensato comenta mas não debate. Logo, há distinções feitas sem distinções; argumentos feitos sem palavras. Perguntam: como é isso? O sensato acalenta seus pensamentos, enquanto as pessoas comuns argumentam para aparecerem umas às outras. Por isso se diz: Quem discute não enxerga. A grande Natureza não tem nome, o grande argumento não usa palavras, a grande benevolência não parece benevolente, a grande honestidade não conta vantagem, a grande coragem não agride. A Natureza evidente não é toda a Natureza, palavras argumentativas não alcançam o ponto, a benevolência frequente não alcança o que busca, a honestidade pura não desperta confiança, a coragem agressiva não alcança o que busca. Esses cinco são redondos, mas tendem a adquirir arestas. Portanto, o conhecimento que conhece seus limites é o melhor. Quem sabe argumentar sem palavras, quem conhece a Natureza sem nome? Quem tiver tal conhecimento pode ser chamado "governante do céu". Preencha-o sem que se torne cheio, utilize-o sem que se esvazie, e não sabendo de onde tudo isso vem, pode ser chamado brilho oculto. Assim, na Antiguidade Yao perguntou a Shun: "Eu quero atacar Zong, Kuai e Xu Ao, desde que sentei ao trono não esqueço essa ideia. O que acha disso?" Shun respondeu: "Esses três Estados vivem no meio da imensidão selvagem. Como pode não esquecer essa ideia? Antigamente dez sois saíram, iluminando todos os seres, mas a Espontaneidade, como brilha mais!"


2.11

Nie Que perguntou a Wang Ni: "Você sabe em que todos concordam?" Resposta: "Como eu poderia saber! "Você sabe aquilo que não sabe?" Resposta: "Como eu poderia saber!" "Então ninguém sabe?" Resposta: "Como eu poderia saber! Porém, deixe-me tentar explicar. Como posso saber se, aquilo que acredito saber, eu de fato não sei? Como posso saber se, aquilo que acredito não saber, eu de fato sei? Além disso, deixe-me perguntar: Se uma pessoa dormir em um canto úmido, fica com dor nas costas e pode até morrer, mas isso acontece com as enguias? Vivendo nas árvores, uma pessoa ficaria ansiosa e amedrontada, mas isso acontece com os macacos? Desses três, quem conhece o lugar correto para se viver? Pessoas comem animais domésticos, cervos comem grama, centopeias saboream pequenas cobras, corujas e corvos deliciam-se com ratos, desses quatro, quem conhece o alimento mais saboroso? Macacos gostam de macacas, alces vivem em meio aos cervos, enguias nadam entre outros peixes. Mao Qiang e Li Ji eram consideradas belas, se peixes as vissem, nadariam para o fundo; se aves as vissem, voariam para o alto; se cervos as vissem, sairiam em disparada. Desses quatro, quem conhece a verdadeira beleza do mundo? Do meu ponto de vista, os princípios de benevolência e justiça e os caminhos do certo e errado, estão todos misturados e confusos, como podemos conhecer suas definições? Nie Que respondeu: "Se o senhor não conhece o benéfico e o prejudicial, então as Pessoas Perfeitas também não os conhecem?" Wang Ni respondeu: "Pessoas Perfeitas são como espíritos: os mares poderiam ferver e não sentiriam calor, os rios poderiam congelar e não sentiriam frio, tempestades poderiam destruir montanhas, ventos agitarem os oceanos e não sentiriam medo. Tais pessoas montariam os ventos, dirigiriam o Sol e a Lua, e viajariam para além dos quatro mares. Morte e vida não os afetariam, quanto menos princípios de benefício e prejuízo!"


2.12

Qu Que Zi perguntou a Chang Wu Zi: "Eu ouvi Confúcio dizer, 'os sensatos não se envolvem em negócios, não buscam benefícios, não evitam prejuízos, não gostam de pedir, não ficam à margem da Natureza, dizem coisas sem dizer, falam sem nada falar, e seguem alheios às coisas do mundo.' Confúcio disse que essas são palavras precipitadas, mas eu acho que elas seguem a misteriosa Natureza. O que o senhor pensa?" Chang Wu Zi respondeu: "Mesmo o Imperador Amarelo ficaria perplexo ao ouvir isso, o que poderia Confúcio saber a respeito! Além disso, você também está sendo precipitado, vê um ovo e já procura o galo cantando, vê um tiro e já procura a ave assada. Deixe-me tentar lhe explicar de forma metafórica, você escute metaforicamente, está certo? Ao lado do Sol e da Lua, guardando o Universo em seus braços, fazendo tudo coincidir, rejeitando o duvidoso, louvando os pequenos. A multidão trabalha com afinco, os sensatos parecem tolos, vivendo uma longa vida de simplicidade. Os dez mil seres buscam a própria essência, e assim se completam. Como posso saber se o apego à vida não é uma ilusão! Como posso saber se o medo da morte não é como alguém que saiu de casa e não sabe mais voltar! Li Ji era filha do oficial de Ai. Quando foi raptada pelos soldados de Jin, chorou até encharcar seu vestido; ao chegar no palácio real, compartilhou a cama e os aposentos do rei, comeu de sua farta mesa, e arrependeu-se de ter chorado. Como posso saber se os mortos não se arrependem de ter se agarrado tanto à vida! Quem sonha que bebe vinho pode acordar chorando; quem sonha que está chorando pode acordar e ir caçar. Enquanto no sonho, não sabe que está sonhando. De dentro do sonho pode interpretar o próprio sonho, mas só depois de acordar percebe que estava sonhando. E há o grande despertar, após o qual se descobre que isto é um grande sonho, e há os tolos que acreditam estarem acordados, e secretamente julgam saber. Governantes, pastores, convencidos! Confúcio e você, ambos estão sonhando; eu que disse que vocês estão sonhando, também estou sonhando. Essas palavras são chamadas de paradoxo. Depois de milênios, pode haver um grande sábio que nos explique, seria como o Sol nascente encontrar o Sol poente. Já que estamos nessa discussão, se você me vencer, e eu não lhe vencer, quer dizer que você está certo? E eu errado? Se eu lhe vencer, e você não me vencer, quer dizer que eu estou certo? E você errado? Estamos ambos parcialmente certos, ambos parcialmente errados? Estamos ambos totalmente certos, ambos totalmente errados? Eu e você não podemos chegar a um acordo, então as pessoas estão em uma completa escuridão. Quem poderia nos esclarecer? Se chamarmos alguém que concorda com você, por concordar com você, não poderia nos esclarecer. Se chamarmos alguém que concorda comigo, por concordar comigo, não poderia nos esclarecer. Se chamarmos alguém que discorda de ambos, por discordar de ambos, não poderia nos esclarecer. Se chamarmos alguém que concorda com ambos, por concordar com ambos, não poderia nos esclarecer. Portanto, eu, você e os demais não podemos chegar a um acordo, devemos esperar outra pessoa? Lidar com vozes oscilantes é como não lidar com voz alguma. Harmonize-as no horizonte, perceba sua longa evolução, gastando assim o tempo que lhe resta. O que significa 'harmonizá-las no horizonte'? Quer dizer: o certo pode não ser o certo, o óbvio pode não ser o óbvio. Mesmo se o certo for certo, sua diferença para o não certo não será mostrada por argumentos; Mesmo se o óbvio for óbvio, sua diferença para o não óbvio não será mostrada por argumentos. Esqueça os anos, esqueça a justiça, levante-se ao ilimitado, faça dele a sua casa."


2.13

A penumbra perguntou à sombra: "Antes você se movia, agora está parada, antes estava sentada, agora se levanta, por que você é tão descontrolada?" A sombra respondeu: "Eu dependo dos movimentos de alguém! E este alguém por sua vez depende de algum outro movimento! Dependo como a cobra de suas escamas, como a cigarra de suas asas! Como posso saber por que sou assim? Como posso saber por que não seria assim?"


2.14

Algum tempo atrás Zhuang Zhou sonhou que era uma borboleta, uma borboleta satisfeita, feliz por voar a seu gosto! Não sabia que era Zhou. De repente acordou, e percebeu que era Zhou. Não sabia se era Zhou que sonhara ser borboleta, ou era uma borboleta sonhando ser Zhou? Entre Zhou e uma borboleta, deve haver alguma diferença. Isto é chamado a transformação das coisas.


莊子|庄子 - Zhuang Zi - capítulo interno - 內篇 - 3

養生主|养生主 - Cultivando o Anfitrião da Vida

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3.1

Nossa vida tem um limite, mas o conhecimento é ilimitado. Usar o limitado para buscar o ilimitado é perigoso; conhecer isso e ainda buscar conhecimento, é realmente perigoso. Fazer o bem e evitar a fama, fazer o mal e evitar a punição. Seguindo o caminho do meio, poderá proteger seu corpo, completar sua vida, cuidar das pessoas que ama, viver os seus devidos anos.


3.2

O cozinheiro Ding cortava um boi para o senhor Wen Hui, o toque de suas mãos, a inclinação dos ombros, o apoio dos pés, o giro dos joelhos, o som das fibras cortadas com precisão, tudo em perfeito ritmo. Como se dançasse a "dança da amoreira", ou escutasse a música de "Jing Shou". O senhor Wen Hui disse: "Grande! Muito bom! Que talento é este!" O cozinheiro Ding guardou a faca, respondendo: "Busco seguir bem a Natureza, que é muito superior ao talento. Quando comecei a cortar bois, apenas via o boi inteiro. Depois de três anos, já não via mais o boi inteiro. Agora, encontro-o com o espírito, não o vejo com os olhos, o corpo sabe parar e deixar o espírito seguir. Seguindo a lógica do tecido, desvio das grandes fibras, ataco os grandes buracos, seguindo sua estrutura natural. Evito as conexões membranosas, e ainda mais os grandes ossos! Um bom cozinheiro usa sua faca por um ano, porque ele corta; Um mau cozinheiro usa sua faca por um mês, porque ele golpeia. Agora eu tenho esta faca há dezenove anos, já cortei milhares de bois com ela, e sua lâmina está como recém-amolada. Porque as juntas têm cavidades, e a lâmina não tem espessura, colocando o sem espessura onde há cavidades, há espaço de sobra para mover a lâmina, é por isso que há dezenove anos a lâmina da faca está como recém-amolada. Contudo, sempre que encontro um problema, examino suas dificuldades, com bastante cuidado, vejo onde parar, avanço devagar. Mexo a faca bem de leve, e com um estalo separo a parte que cai como um torrão de terra. Segurando a faca permaneço de pé, olho ao redor, com tranquila satisfação, limpo e embainho a faca." O senhor Wen Hui disse: "Muito bom! Ouvi as palavras do cozinheiro Ding, e aprendi como cultivar a vida."


3.3

Gong Wen Xuan viu o Mestre You, assustou-se e disse: "Quem é esta pessoa? Como ele ficou só com uma perna? Isso é do céu, ou das pessoas?" A resposta: "Do céu, não das pessoas. O céu o fez diferente, a aparência das pessoas as une. Por isso eu sei que foi o céu, e não as pessoas."


3.4

Um faisão do pântano dá dez passos para cada bicada, cem passos para beber água, e ainda assim não gostaria de ser mantido em uma gaiola. Seu espírito, ainda que tratado como um rei, não estaria feliz.


3.5

Quando Lao Dan morreu, Qin Shi foi ao funeral, berrou três vezes e saiu. Um discípulo perguntou: "O senhor não era amigo do mestre?" "Era" respondeu o outro. "Então lamentar assim, é apropriado?" A resposta: "Naturalmente. No início, achei que era um homem, agora não acho mais. Quando entrei para lamentar, os velhos choravam, como se chorassem seu filho; os pequenos choravam, como se tivessem perdido a mãe. essas pessoas se reuniram, algo havia que não queriam falar e falaram, não queriam chorar e choraram. Isto é fugir das leis naturais e agarrar-se demais aos sentimentos. esquecendo-se de onde recebemos a vida, os antigos chamavam isto a penalidade por fugir das leis naturais. O mestre chegou no momento apropriado; quando foi hora de ir, obedeceu. Aceitando oportunidades e seguindo as leis da vida, o lamento não tem lugar, os antigos chamavam isso de cortar os laços da dominação."


3.6

Não podemos apontar de onde vem, mas o fogo é transmitido, e ninguém conhece o seu fim.


莊子|庄子 - Zhuang Zi - capítulo interno - 內篇 - 4

人間世|人间世 - O Mundo Humano

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4.1

Yan Hui se encontrou com Zhong Ni [Confúcio], pedindo-lhe para viajar. Zhong Ni disse: "Para onde vai?" Hui respondeu: "Para o Reino de Wei." E Zhong Ni: "Fazer o que lá?" Hui: "Dizem que o rei de Wei, ainda jovem, age por conta própria, conduz o reino levianamente, sem perceber os próprios excessos, deixa o povo morrer sem se preocupar, os corpos já atulham os pântanos, o povo está indefeso como se fossem vegetais. Já ouvi o senhor dizer: 'se um reino está bem governado, mova-se, se um reino está em caos, visite-o.' Há muitos doentes nas portas dos médicos. Espero usar esses conhecimentos, e talvez aquele reino tenha cura!" Zhong Ni respondeu: "Ah! Corre o risco de ir e acabar punido! A Natureza não pode ser misturada assim, misturando-a ficamos com muito trabalho, muito trabalho leva a problemas, problemas levam a aborrecimento, aborrecimento além de qualquer solução. As pessoas desenvolvidas da antiguidade primeiro desenvolviam a si mesmas, para depois desenvolverem os outros. Sem ter ainda se desenvolvido, como pode desperdiçar seu tempo indo encontrar este homem violento! Além disso, você sabe o que dissipa a Espontaneidade, e aonde leva o conhecimento? A Espontaneidade se dissipa com a fama, e o conhecimento leva a disputas. Os que buscam fama se destroçam mutuamente; os que buscam conhecimento, usam-no para competir. Ambos são armas letais, não são suficientes para uma conduta. Assim, com profunda Espontaneidade e confiança inabalável, ainda assim não alcançou a essência dos outros; não disputa pela fama, mas não alcançou o coração dos demais. E quem busca impor regras de benevolência e justiça a pessoas violentas apenas faz com que lhe odeiem justamente por sua bondade, são assim chamados malditos. Quem é maldito, será pelos outros amaldiçoado, e é a isso que você se arrisca! Além do mais, digamos que ele admire pessoas honradas e despreze as sem valor, que uso haverá em tentar fazê-lo agir diferente? Antes de você emitir sua opinião, o rei usará o que tiver à disposição para vencer o argumento. Seus olhos ficarão perplexos, sua expressão pálida, sua boca vacilará, todo seu ser se conformará, e sua mente estará entregue. Isso será combater fogo com fogo, água com água, o que é chamado agravante; uma vez iniciada, a obediência não terá fim. Se você arriscar ignorar este conselho e falar demais, então morrerá frente a este homem violento. Antigamente, Jie matou Guan Long Feng, Zhou matou o príncipe Bi Gan; todos eram pessoas corretas, dedicadas ao povo, mas por terem desobedecido seus superiores, foram por eles esmagados. Isso porque amavam a fama. Antigamente, Yao atacou Cong, Zhi e Xu Ao, Yu atacou You Hu, os países ficaram arruinados, as pessoas exterminadas, usaram seus exércitos sem parar, incansáveis atrás do lucro. Todos esses são exemplos de busca da fama e do lucro, você não ouviu falar deles? Fama e lucro, nem os sensatos conseguem vencê-los, quanto mais você! Apesar disso, você deve ter um plano, deixe-me ouvi-lo!" Yan Hui disse: "Correto e modesto, perseverante e focado, isso basta?" Zhong Ni respondeu: "O quê! Mas como? O rei é vaidoso e extravagante, seu humor inconstante, as pessoas geralmente não se opõem a ele, pois ele manipula seus sentimentos de forma a controlar seus corações. Tais pessoas não aprendem sequer as lições diárias da Espontaneidade, quanto mais a grande Espontaneidade! Ele insistirá sem mudar, por fora concordará com você, mas por dentro ele não se arrependerá. Como você pode ter sucesso?" "Então por dentro me manterei íntegro e por fora submisso, instruirei fazendo referência aos antigos. Íntegro por dentro, assim um seguidor dos céus. Sendo um seguidor dos céus, sei que o filho dos céus [o rei] é tão filho dos céus quanto todos nós; assim, que me importa se minhas palavras são consideradas boas ou não pelos outros? Assim, as pessoas me têm como uma simples criança, isso é ser um seguidor dos céus. Submisso por fora, assim um seguidor das pessoas. Erguer os braços, ajoelhar-se, dobrar os punhos, eis os rituais dos oficiais, o que todos fazem, como eu ousaria não fazer? Ninguém pode me culpar por fazer o que as pessoas fazem, isso é ser um seguidor das pessoas. Instruir fazendo referência aos antigos, assim um seguidor dos antigos. Ainda que as palavras ensinem e advirtam, são palavras dos antigos, não minhas. Assim, embora íntegro não serei punido, isso é ser um seguidor dos antigos. Se agir assim, isso basta?" Zhong Ni respondeu: "O quê! Mas como? Você tem muitos planos, planeja sem conhecer esse rei; embora firme, é também inocente. Contudo, mesmo que ele pare e te escute, como isso poderá mudá-lo! Ele o escutará como a um professor, apenas."


4.2

Yan Hui disse: "Não consigo avançar, ouso perguntar a direção." Zhong Ni respondeu: "Jejum, vou te explicar como! Com a mente limitada, acha que será fácil? Aja como se fácil fosse, e o brilhante céu não aprovará." Yan Hui disse: "Nossa família é pobre, há meses não temos vinho ou carne. Isso poderia ser chamado de jejum?" Resposta: "Isso é um jejum ritual, não o jejum da mente." Hui disse: "Ouso perguntar do jejum da mente." Zhong Ni explicou: "Reúna sua vontade, não escute com os ouvidos, mas com a mente, não escute com a mente, mas com a sua essência. A audição para nos ouvidos, a mente para nos significados. Mas a essência, vazia, espera pelas coisas. A Natureza se concentra no vazio. O vazio é o jejum da mente." Yan Hui disse: "O Hui que não sabia ainda usar esse método, aquele era um Hui; agora que o aprendeu, não é mais o mesmo Hui. Isso pode ser chamado de jejum?" O Mestre disse: "Exatamente. Deixe-me explicar! Se puder entrar nos domínios desse príncipe sem buscar a fama; se ele escutar, diga o que tem a dizer, senão cale-se. Não se exponha muito nem o perturbe, chegue em sua casa e lá resida como se não tivesse escolha, assim estará quase lá. Apagar os vestígios do chão é fácil, difícil é não percorrê-lo. Ao lidar com homens, é fácil enganá-los; difícil é enganar os céus. Ouvimos falar de vôo com asas, não ouvimos falar de vôo sem asas; Ouvimos falar de sábios com sabedoria, não ouvimos falar de sábios sem sabedoria. Olhe esta fenda na porta, por onde a luz invade o quarto vazio. A boa fortuna reside no repouso. Quando não há repouso, chamamos 'galopar sentado'. Deixando ouvidos e olhos se comunicarem por dentro, mas mantendo de fora o saber da mente, os espíritos assim virão residir, e ainda mais as pessoas! Eis a transformação dos dez mil seres, à qual se ligaram Yu e Shun, a prática diária de Fu Xi e Ji Qu, ainda mais importante para as pessoas comuns!"


4.3

Quando Zi Gao, o duque de Ye, foi enviado a trabalhar em Qi, ele foi perguntar a Confúcio: "O rei me enviou numa missão muito importante; Qi aguarda o seu enviado, devo ser respeitável e paciente. Pessoas comuns já não podem ser pressionadas, ainda menos um príncipe! Estou muito preocupado. O senhor uma vez me disse: 'Em qualquer assunto grande ou pequeno, poucos alcançam sucesso sem compreender a Natureza. Se não houver sucesso num assunto, então haverá aborrecimento devido à Natureza humana; Se houver sucesso num assunto, então haverá aborrecimento devido ao yin-yang. Com ou sem sucesso conseguir evitar aborrecimento, apenas com Espontaneidade é possível.' Minha comida é simples e preparada com facilidade, então a cozinha não requer limpeza. Hoje cedo recebi minhas instruções e à noite estava me refrescando com gelo, como sinto calor! Ainda não sei o assunto da minha missão, e já sinto o aborrecimento devido ao yin-yang; se não houver sucesso nesse assunto, ainda sofrerei o aborrecimento devido à Natureza humana. São dois aborrecimentos, como ministro não me sinto à altura da tarefa, espero que o senhor tenha algum conselho para mim!" Confúcio disse: "Existem no mundo duas máximas: uma é o destino, a outra a justiça. O amor de uma criança por seus pais é destino, não pode ser retirado de seu coração; um ministro servir seus superiores é justiça; se não o fizer, não haverá lugar no mundo para se esconder. Essas são chamadas grandes máximas. Portanto servir a seus pais, seja onde for e com tranquilidade, é o máximo do amor filial; servir a seus superiores, em qualquer assunto e com tranquilidade, é o máximo da lealdade; servir a seu próprio coração, sem se importar com a tristeza ou alegria que isso traga, sabendo não poder evitá-los e contente como se fosse o seu destino, é o máximo da Espontaneidade. Aquele que serve como ministro encontra coisas que não pode evitar, manejando a situação e esquecendo-se de si, não restará tempo para amar a vida ou temer a morte! Este é o caminho a se seguir! Mas deixe-me contar algo que ouvi: Em relações comuns, a proximidade favorece a confiança mútua, a distância nos obriga a confiar em palavras transmitidas por terceiros. Mas transmitir palavras, sejam alegres ou raivosas, é uma das coisas mais difíceis do mundo. Se a mensagem for alegre, deve-se exagerar nas palavras bonitas; se raivosa, deve-se exagerar nas palavras feias. Essas palavras facilmente fogem ao controle, e assim não despertam confiança, causando a desgraça do mensageiro. Por isso o Livro das Regras diz: 'Transmita as palavras corretamente, sem exageros, assim poderá sobreviver.' Além disso um lutador habilidoso no início luta abertamente, depois vai se tornando menos previsível, até apresentar golpes bastante estranhos; os que bebem vinho em uma cerimônia, no início parecem comportados, mas depois se descontrolam, chegando a brincadeiras bastante esquisitas. Em todas as coisas é assim. Começamos com compreensão, acabamos com discórdia; o que era simples no início, se torna imenso no final. Palavras são como vento e ondas, ações podem causar ganhos e perdas. Vento e ondas se movem com facilidade, ganhos e perdas facilmente se tornam um risco. A raiva brota de nada além de palavras habilidosas e discursos parciais. Um animal agonizando não escolhe os seus sons, um ruído vem das suas profundezas, assustando ambos caça e caçador. Se você forçar demais alguém, pode causar uma resposta indigna sem que o outro saiba o porquê. Se não se conhece o porquê das ações, quem saberá onde isso pode acabar! Por isso o Livro das Regras diz: 'Não desvie das ordens dadas, não apresse o resultado.' Ultrapassar esses limites é excessivo. Desviar das ordens ou apressar o resultado coloca em risco as negociações, um bom resultado leva tempo, um resultado medíocre não pode ser corrigido, não se pode tomar cuidado o bastante! Portanto, siga seus afazeres com a mente tranquila, faça o que precisar fazer e busque o caminho do meio, isso deverá bastar. E na hora de retornar com seu relatório, faça como se fosse o seu destino. Essa é a dificuldade."


4.4

Yan He, chamado a ser instrutor do filho mais velho do duque Ling de Wei, foi consultar Qu Bo Yu: "A natureza deste homem é assassina. Se eu não fizer nada para corrigi-la, ameaço o nosso Estado; se eu fizer algo para corrigi-la, ameaço a mim mesmo. Sua inteligência basta para ver os erros dos outros, mas não para ver os seus próprios. Como posso ajudar numa situação dessas?" Qu Bo Yu respondeu: "Excelente pergunta! Proteja-se, seja cuidadoso, mantenha-se correto! Quanto à sua aparência, o melhor é segui-lo; quanto à sua mente e coração, o melhor é manter a harmonia. Ainda assim, esses dois oferecem riscos. A aparência de segui-lo não deve afetar o seu interior, a harmonia buscada não deve se tornar completa. Se a aparência de segui-lo afetar o seu interior, você será arruinado. Se a sua harmonia se tornar completa, dirão que busca fama, será desprezado e humilhado. Além disso, se ele agir como uma criança, aja como uma criança você também; se ele agir de forma caótica, aja de forma caótica você também; se ele agir sem prudência, aja sem prudência você também. Faça isso até alcançar o ponto em que não há falhas. Você não conhece o louva-a-deus/põe-mesa (inseto da ordem Mantodea)? Vigorosamente estende seus bracinhos tentando parar uma carruagem, não sabe que não pode conseguir, considera magníficos seus próprios talentos. Proteja-se, seja cuidadoso! Se achar que pode usar os seus talentos para enfrentá-lo, pode ser o seu fim. Você não sabe como fazem aqueles que criam tigres? Não ousam alimentá-los com presas vivas, pois matá-las pode despertar o seu instinto agressivo; não ousam alimentá-los com carcaças inteiras, pois despedaçá-las pode despertar o seu instinto agressivo. Conhecendo os horários de fome e satisfação, podem controlar a sua natureza agressiva. Tigres e pessoas são de espécies diferentes, mas seguindo sua natureza é possível adestrá-los; opondo-a, o resultado é a morte. Um senhor amava tanto o seu cavalo, que guardava suas fezes em cestos, e sua urina em jarros. Quando uma mosca pousou no lombo do cavalo, ele tentou matá-la sem pensar, fazendo o animal cuspir o freio, golpear sua cabeça e esmagar seu peito. Quando a atenção é muita, o amor se perde, você se dará ao luxo de não tomar cuidado?"


4.5

O carpinteiro Shi ia para Qi; quando chegou em Qu Yuan, viu um carvalho no santuário para os deuses da terra. Seus grandes galhos davam sombra a milhares de cabeças de gado, tinha cem palmos de circunferência, ultrapassava as montanhas ao fundo dando galhos trinta metros acima, com os quais se poderia fazer as laterais de dez ou mais barcos. Multidões a observavam como numa feira, e ainda assim o carpinteiro seguiu sem se deter. Seu aprendiz a observou até enjoar, depois alcançou o carpinteiro, dizendo: "Desde que apanhei meu machado para segui-lo, nunca vi madeira tão bela. O senhor não se preocupou em olhá-la, foi embora sem parar, por quê?" O mestre respondeu: "Já chega, nem mais uma palavra! Esta árvore não presta, faça um barco com ela e ele afundará, faça um caixão e ele logo apodrecerá, faça ferramentas e elas logo quebrarão, faça uma porta e ela ficará melada de resina, faça um poste e os insetos o devorarão. Não é madeira de qualidade, não tem uso algum, por isso está viva há tanto tempo." Depois que o carpinteiro voltou para casa, o carvalho do santuário apareceu em seu sonho, dizendo: "Então com o que é que você me compara? Com uma dessas madeiras de lei? Ou com a macieira, a pêra, a tangerina, a lima ou outro desses arbustos frutíferos, quando amadurecem são esfoladas e humilhadas, os ramos maiores são quebrados, os pequenos arrancados. Por isso sua vida é amarga, não podem viver todos os seus anos e acabam morrendo jovens, são assim destruídas pelo povo. Nada escapa a isso. Assim eu venho tentando ser inútil há muito tempo, quase morri, mas consegui descobrir, e isso para mim é muito útil. Caso eu fosse útil, teria conseguido chegar a este tamanho? Além disso, você e eu somos ambos seres vivos, como pode um saber do outro? E um velho quase morto como você, o que pode saber de uma árvore velha como eu!" O carpinteiro Shi acordou e contou o seu sonho. Seu aprendiz disse: "Interessada em se tornar inútil, como então ela se tornou uma árvore sagrada?" O mestre respondeu: "Quieto! Não diga mais nada! Ela apenas vive lá, fazendo com que aqueles que não a conhecem não a maltratem. Não estivesse num santuário, já teriam tentado cortá-la! Além disso, sua maneira de proteger-se é diferente da maioria das pessoas, e julgá-la por isso é passar longe da questão!"


4.6

Nan Bo Zi Qi passeava pelas montanhas de Shang, quando viu uma árvore grande e peculiar, mil carruagens de quatro cavalos podiam se abrigar em sua sombra imensa. Zi Qi falou: "Que árvore é esta? Ela deve ter uma madeira excepcional!" Olhou para cima e viu seus finos ramos, tão tortos que não serviam para fazer vigas; olhou para baixo e viu sua base espessa, tão cheia de reentrâncias que não servia para fazer caixões; lambeu uma folha, apenas para ficar com a boca inchada e dolorida; cheirou-a, era o bastante para deixar um homem intoxicado por três dias. Zi Qi disse: "Esta árvore de fato não presta, por isso ficou tão grande. Ah! Só uma pessoa espiritual poderia usar essa inutilidade!" No distrito de Jing Shi, em Song, crescem bem a catalpa, o cipreste, a amoreira. Aquelas de um palmo ou dois de circunferência, derrubam-nas para terem onde prender seus macacos; as que têm três ou quatro palmos, derrubam-nas para enfeitarem casas altas e vistosas; as de sete ou oito palmos, derrubam-nas para fazerem caixões de nobres e de ricos comerciantes. Por isso não completam o seu tempo de vida natural, morrendo pelo machado no meio do caminho, esse é o problema trazido pelas suas qualidades. Assim, o Jie recomenda que bois de testa branca, porcos de focinho empinado, e pessoas com hemorróidas, não são adequados para o sacrifício ao Rio. Isto é algo que todos os xamãs sabem, e os consideram infelizes, pelo mesmo motivo as pessoas espirituais os consideram extremamente felizes.


4.7

O deformado Shu, seu queixo escondia o umbigo, seus ombros mais altos que a cabeça, seu cabelo unido apontava para o céu, os cinco órgãos vitais comprimidos no alto do tórax, suas coxas saíam pelos lados do tronco. Costurando ou lavando, conseguia se alimentar; peneirando e limpando arroz, conseguia alimentar dez pessoas. Quando o governo recrutava guerreiros, o deformado levantava seus braços em meio à multidão; quando recrutavam trabalhadores para uma atividade penosa, o deformado era dispensado devido à sua enfermidade; quando distribuíam alimento entre os doentes, ele recebia três porções e ainda dez feixes de lenha. Mesmo tendo um corpo deformado, ele ainda podia se alimentar e completar os seus anos de vida, quanto mais não poderia se lhe faltasse apenas a Espontaneidade!


4.8

Quando Confúcio estava em Chu, Jie Yu, o louco de Chu, passou por sua porta, gritando: "Oh Fênix! Oh Fênix! Eis que a Espontaneidade declina! Não podemos esperar o futuro, não podemos buscar o passado. Quando a Natureza predomina, os sensatos têm sucesso; quando a Natureza não predomina, os sensatos sobrevivem. Nos dias de hoje, tentam apenas escapar à punição. A felicidade é leve como a pluma, mas ninguém sabe segurá-la; a desgraça é pesada como a Terra, mas ninguém sabe evitá-la. Chega! Basta de se aproximar das pessoas ensinando a sua Espontaneidade! Arriscado! É arriscado traçar uma linha no chão e decidir o seu lado! Espinheiro! Espinheiro! Não prejudique nosso caminho! Nosso caminho pode ser tortuoso, mas não ferimos os nossos pés!"


4.9

As árvores na montanha por sua Natureza são roubadas, o óleo por sua Natureza é queimado. A casca da canela pode ser comida, por isso a árvore é derrubada; a laca pode ser usada, por isso sua árvore é cortada. Todos sabem a utilidade de ser útil, mas ninguém sabe a utilidade de ser inútil.


莊子|庄子 - Zhuang Zi - capítulo interno - 內篇 - 5

德充符 - Sinal de Espontaneidade Satisfeita

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5.1

Em Lu havia um perneta chamado Wang Tai, os que viajavam para vê-lo eram tantos quanto os que viajavam para ver Confúcio. Chang ji perguntou a Confúcio: "Wang Tai, um perneta, e divide com o mestre as multidões de Lu que os visitam. Levanta-se e não prega, senta-se e não debate, mas eles chegam vazios e retornam cheios. Haverá esse ensinar sem palavras, um ser deformado pode ter o coração completo? Que tipo de pessoa é essa? Confúcio respondeu: "É um cavalheiro sensato. Estou ficando para trás por não ter ido vê-lo ainda. Espero tê-lo como um mestre, quanto mais deveriam aqueles que não são como eu! Por que apenas o país de Lu? Atrairei o mundo inteiro para segui-lo!" Chang Ji disse: "Ele é aleijado, e os homens o chamam mestre, deve ser mesmo excepcional. Se for assim, de que forma única ele deve usar sua mente?" Confúcio disse: "Morte e vida são grandes assuntos, mas não mexem com ele; ainda que os céus desabassem, ele não seria perturbado. Examina a fundo e não se deixa levar pelos demais, seu destino pode ser diverso, mas ele guarda as suas origens." "Como assim?" perguntou Chang Ji. Confúcio respondeu: "Se você olhar as coisas em suas diferenças, há o fígado e o intestino, (os reinos de) Chu e Yue; se você olhá-las em sua igualdade, todos os seres se tornam um. Quando alcança este ponto, ele não busca saber o que o trazem olhos e ouvidos, mas deixa sua mente vagar na harmonia da Espontaneidade; vendo os seres como um, não vê suas perdas, a perda do seu pé é para ele como perder um punhado de terra." Chang Ji disse: "Ele se percebe, seu intelecto compreende sua mente, sua mente compreende a mente comum, mas por que é que gostam tanto dele?" Confúcio respondeu: "As pessoas não se olham na água corrente, mas na água parada, apenas a quietude pode deixar as multidões quietas. A graça da Terra foi dada ao pinheiro e ao cipreste, que do inverno ao verão estão verdes, verdes; A graça dos céus foi dada a Yao e Shun que puderam ser íntegros, tendo a sorte de serem íntegros, puderam tornar íntegros os demais. A perda do medo é sinal de que alguém guarda as suas origens. Um herói sozinho penetra bravamente entre nove exércitos. A busca pela fama já produz esse resultado, quanto mais um profundo conhecimento sobre os céus e a Terra, o governo de todos os seres, fazendo do corpo apenas sua morada, tornando a forma das coisas na unidade do seu conhecimento, e sua mente despreocupada com a morte! E se ele decidir um dia partir, muitos o seguirão. Mas que interesse ele pode ter nos assuntos deles?"


5.2

Shen Tu Jia (Excelente Discípulo Espiritual) era outro aleijado (naquela época cortava-se um pé de criminosos médios, um dedo para crimes menores, etc), e junto com Zi Chan (Produtor de Crianças, um famoso estadista) de Zheng era discípulo de Bo Hun Wu Ren (Pai Sutileza Desabitada). Zi Chan disse a Shen Tu Jia: "Se eu sair primeiro, você espere um pouco; se você sair primeiro, eu esperarei um pouco." No dia seguinte, os dois se reuniram no salão e sentaram no mesmo tapete. Zi Chan disse a Shen Tu Jia: "Se eu sair primeiro, você espere um pouco; se você sair primeiro, eu esperarei um pouco. Hoje eu sairei na frente, você poderá esperar um pouco ou não? Além disso, você encontra um chefe-de-estado e não se distancia, você se acha no mesmo nível de um chefe-de-estado?" Shen Tu Jia disse: "Na casa do Mestre, claro que há um chefe, mas assim? Você foi nomeado chefe-de-estado e por isso se acha superior aos outros! Há um ditado: 'um espelho é brilhante então a poeira não assentou, a poeira assenta então não é mais brilhante. Convivendo bastante com uma pessoa valorosa, aprendemos a não errar.' Agora você busca a grandeza com o nosso Mestre, e no entanto diz algo assim, isso não é errado também?" Zi Chan respondeu: "Você está nesta situação (aleijado|condenado), mas quer disputar em bondade com Yao [sábio rei da Antiguidade, já lendário naquela época], por que não reconhece que sua Virtude não é bastante e cuida de si mesmo?" Shen Tu Jia falou: "Os que escondem sua culpa fugindo do castigo são muitos, os que não escondem a culpa e aceitam ser castigados são poucos. Reconhecer o que não pode ser mudado e aceitá-lo tranquilamente como seu destino, apenas quem tem Espontaneidade pode fazê-lo. Quem andar no campo onde Yi pratica o arco-e-flecha estará no caminho das flechas, e estar lá, e não ser pego por nenhuma, eis o destino. Pessoas com os pés intactos que riram por eu não ter um pé foram muitas. Eu ficava com raiva, furioso mesmo, então conheci o Mestre e aprendi a abandonar esses pensamentos e voltar ao normal. Sem que eu soubesse o Mestre lavou isso de mim com sua bondade! Eu já estou com o Mestre há dezenove anos, e ele nunca mencionou o fato de eu ser aleijado. Agora você e eu buscamos o que é interior ao nosso ser, e você se dirige a mim com base no que é exterior, isso não é errado?" Zi Chan se sentiu incomodado, mudou sua expressão e disse: "Você não precisa dizer mais nada!"


5.3

Havia outro aleijado em Lu chamado Shu Shan Wu Zhi (Tio da Montanha sem Dedos nos Pés), que veio caminhando sobre os calcanhares para ver Confúcio. Confúcio disse: "Você não teve cuidado, e por cometer um crime ficou assim. Agora vem me procurar, de que adianta?" Wu Zhi falou: "Eu não sabia bem o que devia fazer e fui descuidado com meu corpo, por isso perdi os pés. Agora venho aqui, trago algo mais honrado que os pés, e que pretendo manter inteiro. Não há pessoa que o céu não cubra, que a Terra não sustente, pensei que o senhor fosse como o céu e a Terra, não esperava ser recebido assim!" Confúcio respondeu: "Então eu fui estúpido. O senhor não quer entrar? Por favor, vamos conversar!" Wu Zhi foi embora. Confúcio falou: "Coragem, discípulos! Este senhor não tem os dedos dos pés, é um aleijado, ainda assim quer estudar para corrigir seus erros passados, quanto mais não devem estudar os que ainda não erraram!" Wu Zhi disse a Lao Dan (Lao Zi): "Confúcio alcançou a iluminação, ou ainda não? Por que ele vem tão ansioso estudar com o senhor? Ele parece buscar a fama com suas ideias grandiosas e estranhas, não sabe que a fama é como uma prisão para a pessoa iluminada?" Lao Dan respondeu: "Por que você não lhe mostra que a morte e a vida são partes do mesmo fio, que o possível e o impossível estão amarrados lado a lado? isso poderia libertá-lo dessa prisão, não acha?" Wu Zhi falou: "Se ele acha que é um castigo do céu, como poderíamos libertá-lo?"


5.4

O Duque Ai de Lu perguntou a Confúcio: "Em Wei há um homem horroroso, chamado Ai Tai Ta (Cara de Cavalo Esgotado). Senhores que vivem com ele, pensam mas não conseguem abandoná-lo. Senhoritas ao vê-lo, imploram a seus pais: 'Ao invés de me casar com um cavalheiro, prefiro me tornar concubina do Mestre' - isso, dezenas já falaram e continuam falando. Ele não impõe sua vontade aos outros, geralmente entra em harmonia apenas. Não tem contatos influentes que possam salvar alguém da morte, nem possui ricas poupanças para encher as barrigas de quem tem fome. Além disso é tão feio que assusta o mundo inteiro, harmoniza mas não ordena, seu conhecimento não vai além da sua própria região, e mesmo assim mulheres e homens se unem para acompanhá-lo. Essa deve ser uma pessoa muito especial. Eu o convidei para conhecê-lo, e confirmo que sua feiúra assusta qualquer um. Vivemos juntos, e não haviam passado alguns meses, e eu começava a ter uma ideia do tipo de pessoa que ele era; não convivemos nem um ano, e eu já confiava nele. A Nação estava sem líder, eu ofereci o cargo a ele. Aceitou depois de hesitar, como se preferisse a renúncia. Eu fiquei envergonhado, mas finalmente lhe cedi o trono. Logo depois, abandonou-me e partiu, eu fiquei desolado como se perdesse alguém, como se não houvesse mais ninguém com quem compartilhar as alegrias da Nação. Que tipo de pessoa é essa?" Confúcio respondeu: "Uma vez eu fui enviado a Chu, no caminho vi uns porquinhos que se alimentavam da mãe já morta, Pouco depois ainda confusos, todos eles desistiram e saíram andando. Não se parecia mais com eles, não pareciam mais da mesma espécie. O que eles amavam em sua mãe, não era a sua forma exterior, amavam o que animava aquela forma por dentro. Quando alguém morre na guerra, e os seus vão enterrá-lo, não fazem uma homenagem luxuosa, um homem amputado não tem porque valorizar sandálias, nos dois casos o propósito está perdido. Quem se torna concubina do Imperador, não corta as unhas, nem fura as orelhas; funcionários que se casam passam a viver fora do palácio, não podem ser empregados novamente. Ter o corpo inteiro é o bastante para ser aceito, quanto mais quem tem a Espontaneidade inteira! Agora Ai Tai Ta nada diz e confiam nele, nada faz e o estimam, estadistas lhe oferecem o trono, temendo apenas sua recusa, ele deve ter a habilidade completa e a Espontaneidade sem forma." O Duque Ai perguntou: "Como assim habilidade completa?" Confúcio disse: "Morte e vida, existir e perecer, exausto e eminente, pobre e rico, valor e desprezo, ruína e fama, fome e sede, frio e calor, são as mudanças das coisas, o caminhar do destino; dia e noite elas se sucedem, e o conhecimento não pode ver de onde vêm. Por isso não devem prejudicar a harmonia, nem penetrar no domínio do espírito. Fazer com que sua harmonia seja profundamente livre sem se dissipar, e dia e noite sem parar viver como a primavera entre os outros seres, recebendo e nutrindo a estação em seu próprio coração. Isso é chamado habilidade completa." "E o que quer dizer Espontaneidade sem forma?" A resposta: "Das coisas planas, a água parada é incomparável. Podemos usá-la como exemplo, por dentro guarda suas riquezas e por fora não se perturba. A Espontaneidade vem da conquista e conservação dessa harmonia. A Espontaneidade sem forma externa, os seres não podem abandoná-la." Dias depois o Duque Ai disse a Min Zi: "No início, eu me sentava de frente pro Sul e governava o Mundo, regulando as pessoas e lamentando sua morte, eu acreditava haver cumprido minha tarefa. Agora que ouvi as palavras desse homem realizado, temo não tê-las compreendido, e que tenha usado meu corpo de forma leviana, perdendo assim a Nação. Eu e Confúcio, não somos soberano e súdito, mas amigos na Espontaneidade e isso é tudo."


5.5

Um corcunda deformado e sem lábios aconselhava o Duque Ling de Wei, o Duque Ling o admirava tanto, a ponto de achar que um homem perfeitamente formado tinha o pescoço fino demais. Um homem com o papo do tamanho de uma cabaça aconselhava o Duque Huan de Qi, o Duque Huan o admirava tanto, a ponto de achar que um homem perfeitamente formado tinha o pescoço fino demais. Por isso, quando a Espontaneidade é ampla, a aparência é esquecida, as pessoas não se esquecem do que deveriam esquecer, e se esquecem do que não deveriam, eis o chamado verdadeiro esquecimento. Por isso as pessoas sensatas perambulam, o conhecimento para elas é um incômodo, os pactos são como cola, a virtude uma forma de conexão, o trabalho algo a ser vendido. As pessoas sensatas não buscam, que uso fariam do conhecimento? Não separam, que uso fariam da cola? Não lamentam, que uso fariam da virtude? Não produzem bens, que uso fariam do comércio? Esses quatro, são um mingau celestial. O mingau celestial, é como ser alimentado pelo céu. Recebendo seu alimento do céu, que uso fariam das pessoas? Têm a forma humana, mas não as paixões comuns à humanidade. Por terem a forma humana, misturam-se com as pessoas; por não terem as mesmas paixões humanas, questões de certo e errado não lhes afetam. Pequeno, insignificante! Seu lugar em meio à multidão. Grande, enorme! Sua conquista perante o céu.


5.6

Hui Zi perguntou a Zhuang Zi: "Existem pessoas sem paixões?" Zhuang Zi respondeu: "Claro." Hui Zi disse: "Mas uma pessoa sem paixões, pode ser considerada uma pessoa?" Zhuang Zi respondeu: "A Natureza lhes dá aparência, o céu lhes dá forma, por que não seriam consideradas pessoas?" Hui Zi disse: "Se são pessoas, como podem não ter paixões?" Zhuang Zi explicou: "Certo e errado é o que estou chamando de paixões. Essas pessoas sem paixões, são pessoas que não permitem que suas preferências perturbem os seus corpos, pois geralmente seguem sua própria natureza e não buscam estender sua vida." Hui Zi perguntou: "Não buscam estender sua vida, como então mantêm seus corpos?" Zhuang Zi respondeu: "A Natureza lhes dá aparência, o céu lhes dá forma, não permitem que suas preferências perturbem seus corpos. Agora você trata seu espírito como algo externo, esgota sua vitalidade, apoiado a uma árvore se lamenta, agarrado à sombra de uma velha árvore adormece. O céu escolheu a sua forma, e você a usa para discutir sobre o rígido e o branco!"


莊子|庄子 - Zhuang Zi - capítulo interno - 內篇 - 6

大宗師|大宗师 - O Grande e Venerável Mestre

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6.1

Aquele que sabe o que a Natureza faz, e o que as pessoas fazem, chegou lá. Sabendo o que a Natureza faz, vive com a Natureza; sabendo o que as pessoas fazem, usa seu conhecimento do que sabe, para alimentar seu conhecimento do que não sabe, vivendo completamente os seus anos e não perecendo cedo, eis o máximo do conhecimento. Apesar disso, há um porém. Seu conhecimento deve esperar para ser aplicado, e essa espera abre espaço para o desconhecido. Assim como podemos saber o que é da Natureza e não das pessoas? O que é das pessoas e não da Natureza? Portanto devemos ter uma pessoas genuína, para poder então encontrar um conhecimento genuíno.


O que é uma pessoa genuína? A pessoa genuína de antigamente, não desprezava as minorias, não se aliava aos poderosos, não conspirava com os ministros. Por isso, podia errar sem se arrepender, podia acertar sem se convencer. Dessa forma, podia subir nas alturas sem tremer, entrar na água sem se sentir molhado, entrar no fogo sem sentir o calor. É este conhecimento que o permitia subir assim até a Natureza.


Antigamente a pessoa genuína, dormia sem precisar sonhar, acordava sem preocupações, sua comida não exigia requinte, respirava com profundidade. O fôlego da pessoa genuína vai até o calcanhar, o fôlego das pessoas comuns vai só até a garganta. Quando vencidas por um argumento, resmungam como se engasgadas. Abraçadas a sonhos antigos, deixam pouco espaço para as oportunidades do céu.


Antigamente a pessoa genuína, não sabia louvar a vida, não sabia temer a morte; surgia no mundo sem prazer, saía de volta sem reclamar; ia rápido, voltava rápido e pronto. Não se esquecia de onde viera, não perguntava para onde ia; recebia e gostava, se esquecia e retornava. Isso é chamado não querer abandonar a Natureza, não usar pessoas para melhorar o céu. Eis a chamada pessoa genuína. Sendo assim, seguia seu coração, bastava-se a si mesmo, sua fronte serena, sua frieza era como o outono, seu calor como a primavera, sua alegria e raiva seguiam as estações, adequava-se aos seres, e ninguém sabia onde podia chegar. Por isso quando pessoas sensatas fazem guerra, podem destruir um país sem perder a afeição do povo; beneficia todos os seres, mas não por amar as pessoas. Por isso ser otimista no contato com os seres, não é sinal de uma pessoa sensata; ter intimidade, não é sinal de benevolência; calcular o tempo, não é sinal de virtude; não entender a relação entre ganhos e perdas, não é sinal de nobreza; esquecer-se de si em busca de fama, não é sinal de conhecimento; perder o corpo ou viver na mentira, não pode servir às pessoas. Assim como Hu Bu Xie, Wu Guang, Bo Yi, Shu Qi, Ji Zi, Xu Yu, Ji Ta, Shen Tu Di, serviram aos seus superiores, satisfizeram os desejos dos outros, mas não puderam satisfazer os seus próprios.


A pessoa genuína de antigamente, tinha um forte senso de justiça sem ser ortodoxa, parecia não ter o bastante mas nada pedia, compartilhava seu ponto de vista sem se prender a ele, sabia que tinha muito a aprender e não se vangloriava, seu semblante satisfeito expressava felicidade! Não podia evitar sua grandeza! Incomodado, deixava transparecer em seu rosto; generoso, seguia sua Espontaneidade; sério, refletia o mundo ao seu redor! Grandioso, não podia ser controlado; como chumbo, parecia impenetrável; despreocupado, esquecia o que ia dizer. Via a punição como corpo, a tradição como asas, o conhecimento como oportunidade, a Espontaneidade como guia. Vendo a punição como corpo, podia ser brando ao punir; vendo a tradição como asas, podia seguir a sua época; vendo o conhecimento como oportunidade, usava-o sempre que necessário; vendo a Espontaneidade como guia, diz que aqueles que têm pés podem alcançar a colina, mas as pessoas pensam que é uma coisa difícil. Portanto seu gostar é um, seu não gostar é um. Seu um é um, seu não um é um. Seu um, é seguidor do céu; seu não um, é seguidor das pessoas. Quando o céu e as pessoas não competem entre si, eis a chamada pessoa genuína.


6.2

Vida e morte são coisas do destino, como noite e manhã são coisas do céu. Não há nada a ser feito, é assim com todos os seres. Alguns consideram o céu como um pai, e o amam como se tivesse um corpo, quanto mais não amariam se conhecessem toda a sua grandiosidade! Alguns consideram o governante melhor que si mesmos, e entregariam a ele suas próprias vidas, quanto mais sua lealdade! Quando os riachos secam, os peixes ficam presos na terra, respirando a umidade uns dos outros, se molhando com saliva, seria melhor se pudessem esquecer uns dos outros nos rios e lagos. Ao invés de louvar Yao e condenar Jie, seria melhor esquecer ambos e nos transformar junto à Natureza. A Grande Terra me deu forma, trabalho para viver, tranquilidade na velhice, descanso na morte. Porque se vivemos bem, então bem devemos morrer. Se um barco está escondido numa grota, e a grota oculta por um pântano, dizem que está seguro. Mas no meio da noite chega alguém forte e o carrega embora, está tão escuro que ninguém vê. Você pode esconder coisas grandes e pequenas em locais apropriados, e ainda assim perdê-las. Mas se você guardar as coisas do mundo no próprio mundo, não pode perdê-las, essa é a ordem natural das coisas. Por acaso temos uma forma da qual gostamos, mas se essa forma, passa por inúmeras mudanças e não sabemos onde isso vai parar, não é uma alegria que isso seja imprevisível? Por isso pessoas sensatas andam em meio às coisas do mundo sem se perder. Aproveitando a vida seja ela breve ou longa, aproveitando o início e o fim, se as pessoas podem seguir esse modelo, quanto mais aquele dado pelos dez mil seres, que vivem essa transformação.


6.3

A Natureza, tem seu temperamento e seus sinais, mesmo sem agir e sem ter forma; pode ser transmitida mas não contida, pode ser sentida mas não vista; tem origem em si mesma e se enraíza em si, quando ainda não havia céu e Terra, há muito tempo certamente já existia; deu essência aos espíritos e líderes, deu origem ao céu e à Terra; está além da primeira origem sem ser alta, abaixo das seis direções sem ser profunda; nasceu antes do céu e da Terra e não é antiga, se desenvolve desde o passado distante e não é velha. Xi Wei a sentiu, e ergueu o céu e a Terra; Fu Xi a sentiu, e desvendou as propriedades da matéria; Wei Dou (a constelação Ursa Maior) a sentiu, e desde então não mudou seu curso; o Sol e a Lua a sentiram, e desde então não descansaram; Kan Huai a sentiu, e herdou as montanhas de Kun Lun; Ping Yi a sentiu, e vagou pelo grande rio; Jian Wu a sentiu, e passou a viver no Monte Tai; o Imperador Amarelo a sentiu, e subiu para as nuvens no céu; Zhuan Xu (neto do Imperador Amarelo) a sentiu, e passou a viver no Palácio Misterioso; Yu Qiang a sentiu, e se estabeleceu no Pólo Norte; Xi Wang Mu (Mãe Rainha do Ocidente) a sentiu, sentou-se no Shao Guang, ninguém conhece seu início, ninguém conhece seu fim; Peng Zu a sentiu, viveu desde o tempo de Yu, até cinco séculos depois; Fu Shuo a sentiu, e junto a Wu Ding, estendeu seu reinado por todo o mundo conhecido, montou e cavalgou entre Sagitário e Escorpião, encontrando seu lugar entre as estrelas.


6.4

Nan Bo Zi Kui perguntou a Nu Yu: "Sua idade é avançada, mas você tem a aparência de uma criança, como é possível?" A resposta foi: "Eu ouvi a Natureza." Nan Bo Zi Kui disse: "Posso alcançar a Natureza estudando-a?" A resposta: "O quê! Como poderia? Você nem é esse tipo de pessoa. O senhor Bu Liang Yi tem as habilidades de uma pessoa sensata, mas não sua Natureza, já eu tenho a Natureza de uma pessoa sensata, mas não suas habilidades, quis educá-lo, talvez isso o tornasse sensato! Mas não, se a Natureza da pessoa sensata pudesse vir de suas habilidades, seria fácil. Nos isolamos e o instruí, três dias depois ele já podia ignorar o mundo; após ignorar o mundo, continuamos isolados, sete dias depois ele podia ignorar os seres e as coisas; após ignorar seres e coisas, continuamos isolados, nove dias depois ele podia ignorar a própria vida; após ignorar a vida, ele podia ser penetrante como a manhã; penetrante como a manhã, então podia ver as coisas como uma só; vendo as coisas como uma só, então podia ignorar passado e presente; ignorando passado e presente, então podia entrar onde não há morte nem vida. O que tira a vida não é a morte, o que gera a vida não é o nascimento. Em sua relação com os seres, nada há que não convide, nada há que não receba; nada há que não destrua, nada há que não complete. Seu nome é não se deixar perturbar. Aquele que não se deixa perturbar, após o contato se completa." Nan Bo Zi Kui perguntou: "Você aprendeu tudo isso por conta própria?" A resposta: "Aprendi do filho de um escriba, que aprendeu do neto de um orador, que aprendeu de uma pessoa iluminada, que aprendeu de sussuros afetuosos, aprendidos de trabalhadores braçais, que aprenderam através de músicas populares, aprendidas da escuridão misteriosa, que aprendeu da constelação solitária, que aprendeu do início da dúvida."


6.5

Zi Si, Zi Yu, Zi Li e Zi Lai, esses quatro conversavam dizendo: "Quem pode considerar a não-existência como cabeça, a vida como coluna dorsal, a morte como rabo, quem vê a vida e a morte, a existência e a não-existência como uma coisa só, dessa pessoa seremos amigos." Os quatro se olharam e riram, e se sentindo íntimos, tornaram-se amigos. Pouco depois Zi Yu ficou doente, Zi Si foi visitá-lo. Disse Zi Yu: "Grande é a Natureza! Capaz de me deixar assim rígido, inflexível! Minhas costas arqueadas, meus órgãos vitais virados para cima, minha bochecha no nível do umbigo, meus ombros acima da cabeça, meus dedos curvados apontando para o céu." Seu yin-yang estava fora de harmonia, mas sua mente estava em paz, arrastou-se até se ver no reflexo de um poço, e disse: "Ah! Como pôde a Natureza me deixar assim rígido, inflexível!" Zi Si perguntou: "Você não gostou?" Zi Yu respondeu: "O quê? Por que não gostaria! Se meu braço esquerdo pouco a pouco se transformasse num galo, eu saberia quando a manhã está chegando; se meu braço direito pouco a pouco se transformasse num arco, eu poderia usá-lo para conseguir uma coruja assada; se minha bunda pouco a pouco se transformasse em rodas, e meu espírito no de um cavalo, eu poderia montá-la, e não precisaria mais de carruagens! Além disso, há um tempo para receber, outro para perder, tranquilo em cada um desses, não há espaço para lamento ou exaltação. Os antigos chamavam a isso 'desfazer o nó', e os que não podem desfazê-lo, é por estarem presos à existência. Assim, ninguém pode vencer o que os céus fazem há tempos, como eu poderia estar insatisfeito?" Pouco depois Zi Lai ficou doente, arfando à beira da morte, sua esposa e filhos chorando ao seu redor. Zi Li foi visitá-lo e disse: "Xô! Saiam! Não atrapalhem sua mudança!" Encostando-se à porta, lhe disse: "Como é grande a Natureza! Em que mais te transformará? Para onde te levará? Te transformará no fígado de um rato? Na pata de um inseto? Zi Lai respondeu: "Os pais indicam a um filho a direção -- leste, oeste, sul, norte -- e ele a segue. O Yin e o Yang são para uma pessoa como seus próprios pais, se me trazem perto da morte e eu não os ouço, então sou eu o rebelde, que culpa eles têm? A Grande Terra me deu forma, trabalho para viver, tranquilidade na velhice, descanso na morte. Porque se vivemos bem, então bem devemos morrer. Se um grande ferreiro está trabalhando, e o metal salta e diz 'Eu devo ser como a espada Moye', o grande ferreiro certamente pensaria que aquele metal não é propício. Se, ao ganhar forma, eu dissesse 'Apenas humano, apenas humano', a Natureza também pensaria que eu não sou propício. Se pensarmos no Universo como uma grande fornalha, na Natureza como um grande ferreiro, para onde não aceitaríamos ir? Aceitamos o sono, de repente acordamos."


6.6

Zi Sang Hu, Meng Zi Fan e Zi Qin Zhang, esses três amigos conversavam, dizendo: "Quem pode se juntar com outros ao não se juntar com outros, agir com outros ao não agir com outros? Quem pode subir ao céu e rondar a névoa, abraçar o ilimitado, esquecendo-se da vida, sem se preocupar com seu fim?" Os três se olharam e riram, e sentindo-se íntimos, firmaram sua amizade. Passado algum tempo, Zi Sang Hu morreu, mas ainda não havia sido enterrado. Confúcio ouviu o fato, e enviou Zi Gong para ajudar no que fosse preciso. Compondo e tocando a cítara, os dois amigos do falecido cantavam juntos: "Ah, Sang Hu chegou! Ah, Sang Hu chegou! Já voltou ao seu real, e nós ainda no animal!" Zi Gong se aproximou depressa e disse: "Deixem-me perguntar, cantar assim sobre o cadáver, isso é apropriado?" Os dois se olharam e riram, dizendo: "O que este outro sabe sobre o que é apropriado?" Zi Gong voltou, contou o ocorrido a Confúcio e disse: "Que tipo de gente é aquela? Não observam os rituais, não se preocupam com o corpo, cantam ao lado do defunto, sem nem mesmo corar, não tenho nome para isso. Que tipo de gente é aquela?" Confúcio respondeu: "Eles vivem fora dos limites estabelecidos, enquanto eu vivo dentro desses limites. Os de fora e os de dentro não se entendem, e eu enviar você para prestar condolências foi ingenuidade minha. Eles tratam a Natureza como um semelhante, e vagam pelos céus e terras como uma só coisa. Eles veem a vida como uma verruga inutilmente presa ao corpo, e a morte como a remoção da verruga. Dessa forma, como podem se importar com o que vem primeiro, a vida ou a morte! Consideram diferentes formas como tendo a mesma substância, esquecem fígado e vesícula, libertam-se de ouvidos e olhos, vão e retornam do fim ao início, sem conhecer limites, admirados vagueiam além do lodo e da poeira, livres e desimpedidos ocupam-se com não se ocupar. Assim, como eles se preocupariam com esses rituais mundanos, que ocupam ouvidos e olhos da população?" Zi Gong perguntou: "Sendo assim, de que lado o Mestre está?" Confúcio respondeu: "Eu fui punido pelos céus. Porém, isso eu posso compartilhar com você." Zi Gong disse: "Gostaria de saber como." Confúcio explicou: "Peixes se reproduzem na água, pessoas se reproduzem na Natureza. Para os que se reproduzem na água, providencie um poço e estarão bem; para os que se reproduzem na Natureza, não se preocupe e viverão em paz. Por isso se diz: os peixes se esquecem de si nos rios e lagos, as pessoas se esquecem de si quando seguem a Natureza." Zi Gong disse: "E aquelas pessoas estranhas?" A resposta: "Aquelas pessoas são estranhas para o povo, mas comparáveis aos céus. Por isso se diz: pessoas pequenas para o céu são nobres entre o povo; nobres entre o povo são pequenos para o céu."


6.7

Yan Hui perguntou a Confúcio: "Quando a mãe de Meng Sun Cai morreu, ele chorou sem lágrimas, seu coração não estava aflito, atendeu o velório sem se lamentar. Mesmo com essas três faltas, ainda é considerado um excelente pranteador no reino de Lu. Pode alguém sem real valor ganhar fama? Acho isso estranho." Confúcio disse: "Meng Sun alcançou o ápice do entendimento! Ele teria simplificado ainda mais o ritual se o pudesse, mas já o simplificou bastante. Meng Sun não entende a razão da vida ou da morte, não sabe o que vem antes ou depois, se a mudança age, ele a recebe sem saber do que se trata! Além do mais, se ele deve mudar, como saber se ainda não mudou? Se ele não deve mudar, como saber se já não mudou? Mesmo nós dois podemos estar sonhando e ainda não acordamos! E ainda, algo pode mudar a forma dele, mas não o seu pensamento, como alguém em casa de manhã ao invés de morto. Meng Sun está especialmente acordado, quando todos choram ele também chora, é apenas a sua natureza. Além disso, nós dizemos uns aos outros 'eu', como sabemos que 'eu' é este? Você pode sonhar que é uma ave e subir aos céus, sonhar que é um peixe e mergulhar até as profundezas, e não sabe se essas palavras agora, te alcançam acordado ou sonhando? Buscar satisfação não é tão bom quanto sorrir, mostrar um sorriso não é tão bom quanto sorrir junto, e tranquilamente seguir as mudanças, assim se pode penetrar a quieta unidade dos céus."


6.8

Yi Er Zi se encontrou com Xu You, que lhe perguntou: "O que Yao te ensinou?" Yi Er Zi respondeu: "Yao me disse 'você deve se submeter à benevolência e à justiça, e distinguir o certo do errado.'" Xu You disse: "O que veio fazer aqui então? Se Yao já te marcou com valores de benevolência e justiça, e te deformou com ideias de certo e errado, o que busca nessas paragens distantes, livres e inconstantes?" Yi Er Zi disse: "Ainda assim, eu gostaria de conhecer essas paragens." Xu You respondeu: "Negativo. Uma pessoa cega não pode apreciar belas faces e expressões, não consegue distinguir bordados azuis de amarelos." Yi Er Zi disse: "Se Wu Zhuang perdeu de vista sua beleza, Ju Liang perdeu de vista sua força, Huang Di esqueceu sua sabedoria, todos puderam ser remodelados. Como saber se a Natureza não pode apagar minhas marcas e corrigir minha deformação, deixando-me pronto para seguir um novo Mestre?" Xu You disse: "Ah! Não temos como saber. Vou te dar uma ideia geral. Minha Mestra! Minha Mestra! Aperfeiçoa os dez mil seres sem chamar a isso justiça, favorece todas as eras sem chamar a isso benevolência, se estende desde a antiguidade sem chamar a isso longevidade, preenche o céu e a terra, esculpe a multidão de formas sem chamar a isso habilidade. É este o caminho que sigo."


6.9

Yan Hui disse: "Estou melhorando." Confúcio perguntou: "Como?" Yan Hui: "Já me esqueci de ideais de benevolência e justiça." Confúcio: "Bom, mas não é o bastante." Se encontraram novamente depois, Yan Hui disse: "Estou melhorando." Confúcio perguntou: "Como?" Yan Hui: "Esqueci os rituais e suas músicas." Confúcio: "Bom, mas não é o bastante." Se encontraram novamente depois, Yan Hui disse: "Estou melhorando." Confúcio perguntou: "Como?" Yan Hui: "Consigo sentar e me esquecer." Confúcio perguntou animado: "Como assim sentar e se esquecer?" Yan Hui respondeu: "Deixo os membros pendentes, dispenso a inteligência, abandono forma e consciência, unido ao Grande Universo, a isso chamo sentar e me esquecer." Confúcio disse: "Unido assim não haverá preferências, transformado assim não haverá dogmas. Como resultado tornou-se digno! Peço-lhe o direito de segui-lo."


6.10

Zi Yu era amigo de Zi Sang, uma vez choveu sem parar por dez dias. Zi Yu disse: "Zi Sang pode estar doente!" Juntou alguma comida e foi levar para ele. Chegando à porta de Zi Sang, ouviu um canto choroso, acompanhado da cítara, que dizia: "Oh pai, oh mãe! Oh céus, oh gente!" A voz era sem firmeza, e atropelava a métrica das rimas. Zi Yu entrou e disse: "Por que a sua música está assim?" A resposta: "Estive pensando quem me trouxe a tamanha privação. Meus pais certamente não queriam que eu fosse tão pobre! O céu cobre a todos sem egoísmo, a terra provê a todos sem egoísmo, céu e terra certamente não me deixariam assim tão pobre! Busquei o causador disso e não encontrei. Mas se cheguei a tamanho extremo, deve ter sido o destino!"


莊子|庄子 - Zhuang Zi - capítulo interno - 內篇 - 7

應帝王|应帝王 - Acordo para Imperadores e Reis

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7.1

Nie Que perguntou a Wang Ni, quatro perguntas que ficaram sem resposta. Nie Que por isso deu saltos de alegria, e foi contar ao Mestre Pu Yi. O Mestre Pu Yi disse: "E só agora você ficou sabendo? O clã You Yu não é tão bom quanto o clã Tai. O clã You Yu se esconde atrás da benevolência para forçar o povo a lhe servir, e ainda não abandonou o não-humano. O clã Tai se deita com tranquilidade e levanta descansado, às vezes vê a si mesmo como um cavalo, às vezes como um boi, seu entendimento é confiável, sua Espontaneidade verdadeira, e ainda não entrou no não-humano."


7.2

Jian Wu foi ver Kuang Jie Yu. Kuang Jie Yu perguntou: "O que Ri Zhong Shi te disse?" Jian Wu respondeu: "Ele disse: uma pessoa nobre deve se guiar pelos ensinamentos mais nobres, assim quem ousaria agir diferente?!" Kuang Jie Yu disse: "Isso é enganar a Espontaneidade! Usar isso para governar o reino, seria como tentar atravessar o oceano a pé, como cavar uma trincheira através de um rio, ou como forçar um mosquito a carregar uma montanha! Quando uma pessoa sensata governa, ela governa as aparências? Essa pessoa age corretamente e tudo segue daí, certifica-se de fazer o que está ao seu alcance e é isso! Além disso, uma ave voa alto evitando o perigo das flechas, um rato cava bem fundo abaixo do monte sagrado, evitando que cavem e usem fumaça para expulsá-lo, não podemos ser tão sábios quanto esses dois pequenos animais?"


7.3

Tian Gen, andando numa serra ensolarada, chegou nas cachoeiras do rio Liao, onde avistou uma pessoa desconhecida, e perguntou: "Gostaria de saber como lidar com o mundo?" A pessoa desconhecida respondeu: "Vá embora, seu miserável! Perguntar algo tão desagradável! Eu estava a ponto de me reunir à Natureza criadora, e depois, cansado disso, buscaria o pequeno pássaro que vive nos arbustos, seguindo pelas seis direções, passeando por vilarejos sem atrativos, para descansar na vastidão dos campos selvagens. E você, por que vem me perturbar com essa história de controlar o mundo?" Mas a pergunta foi repetida. Então a pessoa desconhecida falou: "Deixe sua mente vagar pelo insignificante, alinhe sua respiração ao vazio, siga sua natureza animal, favoreça o que nada contém, e o mundo estará governado!"


7.4

Yang Zi Ju foi ver Lao Dan, e disse: "Existe aqui uma pessoa, que mesmo doente é forte como uma ponte, tem uma inteligência capaz de compreender todos os seres, e estuda a Natureza sem se cansar. Pode essa pessoa ser comparada aos Reis Iluminados?" Lao Dan respondeu: "Em comparação com as pessoas sensatas, qualquer pessoa pode ter esses dons, trabalhando o corpo e perturbando a mente. Além disso, tigres e leopardos são caçados por suas belas peles, macacos e cães são presos por suas habilidades. Podem esses animais ser comparados aos Reis Iluminados?" Yang Zi Ju espantado disse: "Ouso perguntar sobre o governo dos Reis Iluminados." Lao Dan explicou: "O governo dos Reis Iluminados obtinha realizações sobre todo o reino, mas não parecia obra deles, transformavam os dez mil seres sem tornar o povo dependente, não favoreciam ninguém, permitindo que cada ser encontrasse a própria felicidade, habitavam no inesperado e vagavam pelo inexistente."


7.5

Em Zheng havia um xamã chamado Ji Xian, que sabia das pessoas a vida e a morte, ruína ou fortuna, longevidade ou morte prematura, prevendo com exatidão o ano, mês, semana e dia, como uma divindade. Quando as pessoas de Zheng o viam, largavam seus afazeres e fugiam. Lie Zi o viu e ficou fascinado, voltou para contar a Hu Zi, dizendo: "No início eu pensei que a Natureza do Mestre fosse perfeita, então conheci outra ainda mais perfeita." Hu Zi disse: "Eu já lhe passei sua forma, não sua essência, mas você está certo de ter compreendido a Natureza? Muitas galinhas e nenhum galo, que ovo sairá daí? Você aplica a Natureza aos exageros do mundo, por isso as pessoas vão contra você. Tente trazer esse xamã aqui, e te mostrarei quem ele é." No dia seguinte, Lie Zi foi com o xamã até Hu Zi. Na saída o xamã lhe disse: "Oh! Seu Mestre está à beira da morte, não resta um sopro de vida, algumas semanas talvez! Eu vi algo estranho, como cinzas molhadas." Lie Zi voltou, molhando a blusa de tanto chorar, e contou a Hu Zi. Hu Zi disse: "Eu apareci para ele no padrão da terra, latente, sem movimento, sem firmeza. Provavelmente ele viu minha Espontaneidade bloqueada. Tente trazê-lo novamente." No dia seguinte, foram outra vez ver Hu Zi. Na saída o xamã disse a Lie Zi: "Que sorte seu Mestre ter me encontrado! Está se recuperando, todo seu corpo mostra vitalidade. Eu vi um bloqueio apenas temporário." Lie Zi voltou e contou a Hu Zi. Hu Zi disse: "Eu me mostrei a ele como céu e terra, sem me importar com fama ou posses, apenas a máquina funcionando desde os calcanhares. Ele deve ter visto a máquina funcionando bem. Tente trazê-lo outra vez." No dia seguinte, foram de novo ver Hu Zi. Na saída o xamã disse: "Seu Mestre não está em ordem, não pude ver nada. Se ele melhorar, me chame para vê-lo de novo." Lie Zi voltou e contou a Hu Zi, que disse: "Agora me mostrei a ele como o grande fluxo sem forma. Ele deve ter me visto como uma grande massa de ar. Sob a grande salamandra há um poço, sob a água parada há um poço, sob a água corrente há um poço. Há nove tipos de poço, e mostrei apenas três. Tente trazê-lo novamente." No dia seguinte, foram mais uma vez ver Hu Zi. Antes que se sentassem, o xamã se descontrolou e saiu correndo. Hu Zi disse: "Vá buscá-lo!" Lie Zi foi atrás dele mas não o alcançou, voltou e contou a Hu Zi: "Sumiu! Desapareceu! Não pude encontrá-lo." Hu Zi disse: "Eu me mostrei agora como se não tivesse ainda forma definida. Fui até ele vazio e inconstante, sem saber quem ou o que era, como brisa ou onda que flui, por isso ele correu." Então Lie Zi percebeu que mal havia começado a estudar, voltou para casa e lá ficou por três anos. Cozinhava para sua mulher, alimentava os porcos como quem alimenta gente. Não se intrometeu nos assuntos alheios, retornou à simplicidade, como se fosse só um corpo ereto. Confusão e ordem se tornaram para ele um só até o fim.


7.6

Não viver em busca da fama, não governar cheio de planos, não depender de projetos, não se achar o dono da razão. Se expressando incansavelmente sem deixar rastros, usando completamente o que recebe dos céus sem parecer privilegiado, vazio e nada mais. As intenções da pessoa realizada são como um espelho, não deseja nem busca, se adapta sem acumular, assim consegue prevalecer sem causar danos.


7.7

O imperador do mar do sul se chamava Shu (apressado), o imperador do mar do norte se chamava Hu (desleixado), o imperador central se chamava Hun Dun (turbilhão caótico). Shu e Hu costumavam se encontrar nas terras de Hun Dun, que os recebia muito bem. Shu e Hu planejavam retribuir a Espontaneidade de Hun Dun, dizendo: "Todas as pessoas têm sete orifícios, por onde veem, escutam, comem e respiram, só ele não as tem, vamos tentar abri-las." A cada dia fizeram uma abertura, até que no sétimo dia Hun Dun morreu.